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Entrevista: Sérgio Amadeu
O Homem que peitou a Microsoft
Sociólogo, petista, fã do Pink Floyd e presidente do ITI, responsável pela formulação de políticas públicas de Tecnologias da Informação, Sérgio Amadeu peitou a Microsoft ao comparar sua política comercial com tráfico de drogas
POR LEANDRO WOJAK FOTOS DE MAURO MARIN

Com a missão de ajudar o governo federal a implantar o software livre, o presidente do ITI foi interpelado judicialmente pela Microsoft ao comparar o método de negócios da empresa com o modo de ação de traficantes. Ex-comunista, fã de Pink Floyd e Chico Buarque, Sérgio Amadeu da Silveira é o diretor-presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, órgão vinculado à Casa Civil da Presidência. Divorciado, 43 anos, ele tem uma filha de 16, é filiado ao PT e já militou no MR-8. Sociólogo formado pela USP, sua tese de mestrado aborda o controle do Estado sobre a Internet. Foi professor da Faculdade Cásper Líbero e é autor de um livro sobre inclusão digital. Entre 2001 e 2003, implantou e coordenou o governo eletrônico da prefeitura de São Paulo. Antes de participar de uma palestra sobre software livre na Cidade Universitária, em São Paulo, Amadeu conversou com a Geek sobre pingüins, rock ’n’ roll, inclusão social e direito autoral, entre outros temas.

Geek - Depois daquele pedido de explicações na Justiça, o senhor acabou virando uma espécie de inimigo número 1 da Microsoft?

Amadeu - Não (enfático). Aquele episódio mostra que uma empresa erra. Uma empresa gigantesca, mundial, tentou, me parece, fazer uma ação de intimidação que gerou um resultado adverso. Agora eles mudaram a tática. Mas eu não me importo. O software livre é uma proposta que independe de governo e de grandes empresas.


Geek - Sua crítica foi quanto ao modelo de negócios da Microsoft?


Amadeu - A maior crítica é que eles não nos deixam trabalhar. Não tenho nada contra a empresa, eles deveriam continuar fazendo o trabalho deles. Agora, o governo fez uma opção que é clara, pela diversidade, pela possibilidade de ter mais empresas nessa área, de usar software livre. Eles são a única empresa grande que enfrenta essa opção. Enfrenta politicamente. A empresa era um monopólio absoluto até há pouco tempo, mas essa situação não vai perdurar, ela vai acabar um dia.


Geek - Qual foi sua reação às manifestações de apoio contra o pedido de explicações da Microsoft?


Amadeu - A comunidade fez um trabalho que está acostumada a fazer para desenvolver software, que é agir em rede, compartilhadamente. Recebi sugestões de defesa jurídica de gente dos EUA, da Europa. A comunidade foi fundamental para que a Microsoft caísse na real. Eles perceberam que tinham cometido um erro. Eles não devem levar muito a sério a estratégia deles de medo, incerteza e dúvida. Porque não é todo mundo que tem medo, não é todo mundo que tem incerteza, não é todo mundo que tem dúvida. Uma das coisas mais chatas que existem é quando o poder quer se perpetuar no poder, o monopólio quer se perpetuar monopólio.


Geek - A Microsoft realmente opera com métodos de traficante?


Amadeu - Deixa eu contextualizar o que aconteceu. Estava explicando para a jornalista da CartaCapital a tese do aprisionamento, que é uma tese de economia da informação. O
tráfico é um bom exemplo para explicar como se aprisiona as coisas, mas dentro dessa idéia de como funciona a economia da informação. É claro que fica mais fácil alguém dizer que é uma tática de traficante, mas você precisa ver que eu estou discutindo um contexto específico. Já quando veio o processo, a intimidação e a agressão foram tão grandes que eu achei que não devia dar nenhuma explicação.


Geek - Pensando em seu passado político, é possível estabelecer alguma ligação entre o software livre e a idéia socialista?


Amadeu - Não, o software livre tem mais a ver com a idéia de liberdade. Interessante essa pergunta porque o software livre tem os princípios de colaboração, de compartilhamento, mas a força dele é a liberdade de alterar, de mudar, que está mais na chave liberal do que na chave socialista. Na sociedade da informação, podemos notar que existe uma possibilidade de compartilhar com liberdade, juntando questões como liberdade e solidariedade.


Geek - De onde veio o contato com o software livre?


Amadeu - Durante o mestrado investiguei se a Internet realmente desorganizava os controles estatais. Vários teóricos, como Nicholas Negroponte, diziam que agora o mundo era de liberdade total, mas eu concluí que quem controla a infra-estrutura da Internet pode controlar a rede. Foi aí que tive contato com as idéias da Free Software Foundation. Antes disso, nunca tinha usado o software livre.


Geek - Como foi usar o software livre na implantação dos telecentros em São Paulo?


Amadeu - Quando a gente foi tentar fazer essa rede, o pessoal espalhou o medo, a incerteza e a dúvida, dizendo que seria uma crise, que as pessoas não saberiam usar, que não teria como dar suporte. Todos os mitos foram quebrados. Diziam que o novo usuário não saberia abrir o disquete na casa da tia e que o arquivo da escola não abriria no computador do telecentro. Todos esses mitos foram destruídos pela prática. Quem freqüentava o telecentro aprendia as funcionalidades do software. Aprendia que um editor de texto tem um “salvar o documento”. Se o “salvar” está no ícone da direita ou da esquerda, não importa.


Geek - Foi definida alguma norma que obrigue o governo federal a usar software livre? Vai existir algo nesse sentido?


Amadeu - Não há nenhuma norma dizendo que é preciso implementar, mas há um decreto do presidente dizendo que existe um grupo de trabalho para implantar. Nossa estratégia é implementar o software livre sem ficar preso a nenhuma empresa ou solução específica.


Geek - Qual tem sido a maior dificuldade?


Amadeu - A grande dificuldade é cultural, não é técnica. É o que chamo de aprisionamento em soluções proprietárias. A reserva de mercado que existia para software proprietário era pesada no governo federal. O maior problema é mudar a cultura de desenvolvimento e uso.


Geek - Como vai ser o processo de migração do governo federal?


Amadeu - Os principais órgãos já aderiram à política de software livre. O processo de migração vai acontecer em três etapas. Primeiro, libertando as estações de trabalho, ou seja, os computadores que serão colocados nas escolas vão ser entregues com software livre da solução proprietária. Você coloca software livre nas máquinas. Se um Ministério vai comprar, ele não precisa comprar licença. O segundo passo é definir que os novos desenvolvimentos sejam feitos preferencialmente em software livre, o que nem sempre é possível, porque existe um legado, uma herança. Muitas vezes você tem de renovar ou criar uma solução em um universo proprietário. Por fim, migrar os sistemas estruturados que impeçam esses dois passos.


Geek - Como serão as licitações quando todo o governo tiver migrado?


Amadeu - Vai ser muito parecido com o que existe hoje, com uma vantagem enorme para o país e o governo, que vai receber o código-fonte e uma licença com quatro liberdades e uma restrição. O governo vai poder usar o programa para qualquer fim, estudá-lo completamente, alterá-lo e redistribuí-lo. A restrição é que toda e qualquer alteração não poderá suprimir as liberdades anteriores. Com o código-fonte, você fica independente de qualquer fornecedor. As licitações serão multiplataforma, com licença GPL, e o governo terá a documentação do código-fonte das soluções que compra.


Geek - O programa do Imposto de Renda pode ter código aberto?


Amadeu - Eu acho que não há problema algum. Por que haveria? Se é código aberto, durante o período em que ele não é muito utilizado, uma comunidade pode fazer o debugging [analisar e corrigir erros de um programa] desse sistema, porque, quando você faz um sistema em código aberto, ele tem que ser um sistema robusto. Não é só o cracker que vai saber das falhas.


Geek - Como fica a questão do direito autoral em tempos de software livre?

Amadeu - O software livre enfrenta os piratas. Porque piratas são eles, os que estão à procura do ouro. Na verdade, o software livre deveria ser de domínio público, mas não é. Software livre só existe porque há o direito autoral. A gente defende o direito autoral, só que como um copyright invertido. O software livre se baseia no copyleft, no deixar copiar, que é o hackeamento do copyright. Tudo que o copyright proíbe, o copyleft autoriza. Tudo que o copyright autoriza, o copyleft proíbe.


Geek - O governo americano se manifestou de alguma forma em relação à opção brasileira pelo software livre?


Amadeu - O Brasil é contra a patente do software. Essa é uma questão muito cara à diplomacia brasileira, e nós deixamos claro aos americanos que um algoritmo não pode ser alvo de patente. Patente é um bem industrializável, reprodutível em escala e não uma solução de um conjunto de rotinas lógicas. Por isso, eu acho que as principais batalhas do século XXI serão em torno da propriedade das idéias. Num encontro em Genebra, eu disse que o Brasil quer ter o mesmo direito que os Estados Unidos de usar o software livre. Nos EUA, são empregadas soluções livres nos servidores da Casa Branca, no FBI, na Nasa, no MIT. E o representante americano disse que não tinha nenhuma crítica quanto a isso, que era um direito brasileiro.


Geek - Há algum caso em que o governo teria ficado preso a uma solução proprietária?


Amadeu - Existe um programa de emissão de chaves criptográficas no ITI, do qual nós não temos o código-fonte. Assim, temos muita dúvida se o sistema faz o que ele diz fazer, porque eu não tenho como auditar. Além do mais, a empresa que desenvolveu o sistema faliu. Assim, o ITI está criando uma nova solução em parceria com a Marinha, o ITA, a Universidade Federal de Santa Catarina, a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e a Abin (a agência brasileira de inteligência).


Geek - O governo planeja fazer alguma distribuição Linux?


Amadeu - Nossa idéia não é essa, porque seria bastante complicado. Nós não optamos por apenas uma distribuição, usamos as mais aceitas pelos técnicos. Nossos aplicativos rodam em qualquer distribuição.




ENTENDA O CASO MICROSOFT


Entrevistado para a reportagem “O Pingüim avança”, publicada em março pela revista CartaCapital, Sérgio Amadeu afirmou que a Microsoft adota a “prática de traficante” ao oferecer a governos softwares grátis para a inclusão digital. Ele também afirmou que a empresa utiliza “a estratégia do medo, da incerteza e da dúvida”. Em resposta, a Microsoft foi à Justiça cobrar explicações de Amadeu, que deveria se manifestar em 48 horas. O pedido qualificava de “absurdas e delituosas” as declarações do presidente do ITI, e corresponderiam a “delito de difamação”. Segundo o diretor de Assuntos Jurídicos e Corporativos da Microsoft, Rinaldo Zangirolami, não se tratava de processo ou “retaliação”.

Como conseqüência do pedido de explicações, Amadeu recebeu diversas manifestações de apoio de personalidade ligadas à comunidade do software livre, entre elas, um abaixo-assinado on-line que, em apenas três semanas, reuniu mais de 10 mil assinaturas.

O prazo estabelecido pela Justiça Federal para Amadeu se manifestar acabou dia 15 de junho, sem que o presidente do ITI se pronunciasse oficialmente. Ele se limitou a divulgar uma nota oficial afirmando que “em atenção às demandas da imprensa nacional e internacional, que se solidariza com o governo brasileiro nesse momento sem precedentes na história, em que o dirigente de uma importante instituição pública deste País sofre pessoalmente a ação daqueles interessados em manter um modelo hegemônico, venho, após ouvir meus advogados e procuradores federais, dizer que a provocação judicial movida contra minha pessoa é, por si só, tão inusitada e descabida que não merece resposta.”

A Microsoft acabou desistindo de dar prosseguimento ao caso. Um dia após o término do tempo para a formalização de um processo contra Amadeu, a empresa divulgou nota oficial afirmando ter um “comprometimento de longo prazo com o País”. Ainda de acordo com a nota, a Microsoft afirma estar instalada há mais de 14 anos em terras tupiniquins, mantém 45 mil empregos, paga R$ 1 bilhão em impostos e “sabe que o Brasil tem liberdade para escolher a melhor tecnologia para as suas necessidades”.

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